segunda-feira, 25 de abril de 2011

A Foxconn e os direitos trabalhistas no Brasil


Leonardo Sakamoto - blog do Sakamoto
14.04.2011
  
A Foxconn, empresa de origem taiwanesa responsável pela fabricação de produtos como iPad, PlayStation, Wii e Xbox, além de celulares para diversas marcas, planeja investir US$ 12 bilhões no Brasil nos próximos cinco anos para produzir telas de computador e tablets. A montagem de iPads começaria, por aqui, até o final do ano. O projeto envolveria 100 mil empregos.

A notícia de geração de postos de trabalho, claro, sempre é positiva. Mas estava matutando, procurando saber como o senhor Terry Gou, dono da empresa, e seu parceiro Steve Jobs, pretendem fazer dinheiro por aqui. Nossa legislação ambiental é bem mais rigorosa (no que pesem os esforços do Congresso Nacional de podá-la com motosserra), ou seja, um projeto dessa monta vai ter impactos e, consequentemente, condicionantes e passivos. Isso sem contar que a força de trabalho por aqui é melhor remunerada, com sindicatos mais fortes e uma fiscalização do trabalho mais atuante. Por fim, mas não menos importante, nosso câmbio está valorizado, ao contrário da China – onde a Foxconn tem cerca de um milhão de empregados e uma gigantesca plataforma de exportação.

A entrada de investimentos é alvissareira desde que os parceiros de fora (e seus possíveis parceiros locais – né, Eike?) não pressionem por mudanças nas leis que garantem qualidade de vida aos que moram por aqui. E, acima de tudo, que as respeitem. O Brasil tem conseguido tratar algumas importantes convenções da Organização Internacional do Trabalho como piso e não como teto, em outras palavras, leis nacionais protegem o trabalhador além do mínimo acordado nas Nações Unidas – enquanto a China, entre outros exemplos de crescimento, usam como teto e olhe lá.

No ano passado, a Foxconn, teve – pelo menos – oito casos de suicídio de empregados em território chinês. Por exemplo, um jovem de 21 anos se jogou de um prédio da empresa em Shenzen, um dos pólos tecnológicos do país, por exemplo. Os que defendem a empresa dizem que isso está dentro das taxas de suicídio da sociedade, haja vista o tamanho da gigante de tecnologia. Nada relacionado a longas jornadas de trabalho, pouco descanso, muita cobrança, baixa qualidade de vida, enfim, tudo o que nos enlouquece no dia-a-dia.

Neste ano, o concurso “Public Eye Awards” (algo como o “Prêmio Vigilante Público”) trouxe seis finalistas para serem escolhidas a pior empresa do mundo em se tratando de respeito aos direitos humanos e ao meio ambiente. A Foxconn foi uma delas. De acordo com o concurso, “a indústria de eletrônicos taiwanês Foxconn produz equipamentos de alto tecnologia para marcas como Apple, Dell e Nokia, pagando salários miseráveis. Devido ao controle da força de trabalho ao estilo militar adotado nas instalações da empresa na China, ao menos 18 empregados tentaram suicídio no ano passado”.

A realidade de lá é diferente da daqui, é claro. Mas na toada em que vamos, em que o modelo chinês de desenvolvimento vem se tornando um mantra (nessa hora, ninguém lembra do regime política de lá, né? Uma graça!), é sempre bom manter os olhos naquele mínimo de proteção que a nossa sociedade conseguiu em um século de diálogos e enfrentamentos. Crescer é importante, mas nunca esquecendo para quê.

Alguém vai dizer: “deixa de ser chato, japonês!” Mas para ironizar a Gloriosa: o preço da liberdade é a eterna vigilância (sabia que, um dia, eu usaria essa frase para alguma coisa…)

Gosto de uma história que já contei aqui: Há mais de 50 anos, o “demônio” apareceu para um grupo de operárias que trabalhavam em uma linha de produção de uma fábrica de cerâmica em São Caetano do Sul. Ações modernizadoras aceleraram o ritmo industrial da produção de ladrilhos, sem que isso fosse devidamente informado às trabalhadoras. Com a atualização tecnológica, a seção que escolhia os ladrilhos, excluída das decisões que levaram às mudanças, continuou manual, mas subjugada à nova velocidade do maquinário. Muitos ladrilhos começaram a sair defeituosos, levando tensão às operárias dessa seção, que tiveram dificuldade para cumprir seu serviço. Oriundas de uma comunidade católica, as trabalhadoras creditaram tal fato à presença do diabo na fábrica: o Coisa Ruim teria o jeitão e o sorriso dos engenheiros, que controlavam tudo de cima. Foi demandada uma missa no local e que a máquina de ladrilhos fosse benzida. O diabo desapareceu. Não apenas por conta daquele ato simbólico, mas também pelo fato da máquina ser ajustada para não causar mais problemas…

Essa história foi analisada pelo professor José de Souza Martins em um artigo que se tornou famoso por tratar das conseqüências da modernização industrial. Segundo ele, quando se separa radicalmente o pensar e o fazer no processo de trabalho, o imaginário pode preencher esse vazio para lhe dar sentido. O demônio apareceu como a figuração da ameaça à humanidade do ser humano pela racionalização do trabalho. Para enfrentar o problema dos suicídios, a Foxconn chegou a chamar monges budistas para realizar cerimônias a fim de mandar os maus espíritos para longe.

Adaptando o professor Martins, chamar monges na China ou padres em São Caetano do Sul tem o mesmo objetivo de tentar restituir as fábricas ao “tempo cósmico e qualitativo que fora banido com a completa sujeição de todo o processo de trabalho ao tempo linear, quantitativo, repetitivo da produção automatizada”.

E quando somos nós mesmos, nosso modelo de desenvolvimento e nossa forma de fazer negócios globalmente que trazem sistematicamente os “maus espíritos”? O que fazer?

Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e o desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão. Já foi professor de jornalismo na USP e, hoje, ministra aulas na pós-graduação da PUC-SP. Trabalhou em diversos veículos de comunicação, cobrindo os problemas sociais brasileiros. É coordenador da ONG Repórter Brasil e seu representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.

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