Adoro batata-doce com leite, que em minha infância a gente só podia comer de vez em quando, tipo uma vez por semana, pois vovó dizia que era uma comida danada de boa, mas faltava só um grau pra veneno. Não entendeu? Nem eu, até hoje! Talvez porque é um daqueles alimentos ditos “fortes”, que dão sustança – que a gente come e se delicia. E, ao terminar, está saciada, sonolenta, meia zen! Juro!
Batata-doce com leite é uma carícia quando a gente está em busca de conforto… Sabe aquela sensação indescritível de querer comer algo que não se sabe o que é? Não é fome propriamente, pois com fome come-se qualquer coisa, como se diz no sertão: “A boca quer coisa boa, mas a barriga quer é ficar cheia”.
Comer batata-doce com leite é dar um “trato” em minha memória alimentar afetiva. É comer e sentir renovar as energias. Desde o dia da twitada xenófoba da acadêmica de direito de Sampa, que incitava matar nordestinos por afogamento, eu sabia que precisava de algo! Só consegui falar sobre o assunto após comer batata-doce com leite! “Puxei pela memória”…
Quando morava em São Paulo, na primeira metade dos anos 1990, uma amiga chegou à minha casa e eu estava comendo batata-doce com leite. Ela indagou o que era aquilo. Depois que respondi, a dita cuja lascou: “Ah, que baianada!”. Não engoli calada e, “olhos nos olhos”, me arretei dizendo-lhe que ela sabia que eu não era baiana e sim maranhense, mas que na Bahia também comiam batata-doce com leite, assim como no Nordeste todo.
Como uma socióloga não percebia que a naturalização e a banalização de vocábulos repletos de nojo e asco, que expressam aversão ao estrangeiro (xenofobia – do grego, “xeno” = estrangeiro + “fobia”=medo), são uma desumanização e desrespeito ao outro? Acrescentei que estava pelo gogó com essa história de que todo nordestino em São Paulo é baiano, termo usado não para indicar quem nasce na Bahia, mas para, depreciativamente, se referir a nordestinos e nortistas: “Essa gente lá de cima (demorei pra entender que se referiam ao mapa do Brasil!), que até coisas estranhas come…”.
Na época recrudescia em São Paulo o nojo a nordestinos, para ferir a prefeita de São Paulo, a paraibana Luiza Erundina, que a elite paulistana jamais engoliu! Ao contrário, perseguiu sem tréguas. Coincidentemente, eu estava às voltas com um xenófobo casal egípcio, radicado em São Paulo há mais de 30 anos, pais de um namorado de uma das minhas filhas, que teve o desplante de ir “tomar satisfações” comigo! Foi uma cena ridiculamente surreal!
O pai chegou arrastado pela sua consorte, que não era nada submissa para afrontar-me. Balbuciava que não era contra o seu “bebê” namorar uma “baiana” (pense no asco!), apenas que eu os respeitasse, não oferecendo carne de porco para ele. E que eu ficasse sabendo que o filho dela se casaria com uma muçulmana. Com baiana, jamais! Disse-lhes que a porta da rua era a serventia da casa e os escorracei!
Entendi ali como a elite paulistana, quatrocentona e xenófoba, consegue impor e perpetuar ideias de superioridade racial (racismo) e a renitente aversão a nordestinos: catequizando até imigrantes de outros países que “essa gente lá de cima” (do mapa) é erva-daninha! Na cidade de São Paulo, que tem suor “dessa gente lá de cima” em cada grão de riqueza, tudo o que alguém faz de errado ou que não presta, para xenófobos nativos caipiras e/ou letrados “sorbonados”, é “baianada”.
Chega, a postura xenófoba dessa gente mina os alicerces da República!
Publicado no Jornal OTEMPO em 16/11/2010
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