segunda-feira, 19 de julho de 2010

A América que não está na mídia

A América que não está na mídia

publicada segunda-feira, 19/07/2010 às 16:01 e atualizada segunda-feira, 19/07/2010 às 16:01
Por Marcelo Salles
O diplomata carioca Celso França, 45 anos, foi o coordenador, pelo Itamaraty, do último encontro da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe das Nações Unidas (Cepal), realizado em Brasília entre o final de maio e o início de junho desse ano. Na ocasião, a atuação regional do Brasil na região teve amplo destaque. De acordo com a secretária-executiva do Cepal, a liderança do presidente Lula “tem sido uma inspiração para nossa instituição” – uma realidade raramente reconhecida pelas corporações de mídia.
“É motivo de orgulho para a diplomacia brasileira observar os resultados positivos da opção pela cooperação Sul-Sul”, afirma Celso França. “Segundo dados do Ministério da Indústria e Comércio Exterior, as exportações para a América Latina e o Caribe aumentaram 42,8% só no primeiro semestre de 2010, colocando a região na primeira posição de mercado comprador de produtos brasileiros”, complementa o diplomata.
Nesta entrevista exclusiva, Celso também fala sobre a crise financeira global e as alternativas desenvolvidas pelo Brasil, como a maior presença do Estado na economia – o que era impensável pelo pensamento do “Consenso de Washington”. O diplomata também comenta a nova configuração internacional. “As grandes potências reconhecem o novo papel dos BRICs [Brasil, Rússia, Índia e China] na economia mundial”, afirma. E o grande diferencial positivo nessa história é a inclusão social que vem sendo implementada a partir do fortalecimento dos mercados internos, como disse o presidente Lula durante a reunião da Cepal: “O motor dessa integração são os setores excluídos”. Assim, forma-se um círculo virtuoso, segundo Celso: “Fortalecidos, os mercados internos facilitam uma maior integração”.
Segue a entrevista.
Qual o significado político do último encontro da Cepal, realizado em Brasília no início junho?
Foi curioso abrigar a Cepal em Brasília, justamente no cinqüentenário da capital federal. Pudemos contrastar as imagens de JK em 1960, exibidas na TV amiúde, com a reunião da Cepal em 2010. Foi como retomar, 50 anos mais tarde, um sonho antigo, que se viu interrompido, primeiro, pelo regime militar de 1964 do Estado autoritário e, depois, pelas reformas liberalizantes do Estado mínimo.
Ao acolher a Cepal, o governo brasileiro demonstra apoio às teses cepalinas do fortalecimento do Estado, com redistribuição de renda e participação democrática da sociedade civil. Não só no Brasil, mas em vários outros países da região o contexto atual indica uma diminuição considerável da desigualdade social, ao lado do aprofundamento do processo de inclusão política dos segmentos mais vulneráveis da população.

A secretária-executiva do Cepal, Alicia Bárcena, disse que a liderança do presidente Lula “tem sido uma inspiração para nossa instituição”. Como você avalia esse reconhecimento?

Em seu discurso de abertura, Bárcena lembrou que o Brasil foi escolhido para sediar este Período de Sessões da Cepal em função das várias iniciativas do governo Lula em favor da integração regional. Citou, nominalmente, a Cúpula do Sauípe, quando líderes da América Latina e do Caribe reuniram-se para tratar das experiências comuns à região, sem o receituário tradicional das grandes potências. É motivo de orgulho para a diplomacia brasileira observar os resultados positivos da opção pela cooperação Sul-Sul.

O Brasil firmou convênio com a Cepal para a formação de gestores em Ciência e Tecnologia. Como isso vai funcionar? Qual o objetivo com essa iniciativa?

É verdade. Durante o encontro, foi firmado um Memorando de Entendimento entre o Ministério de Ciência e Tecnologia e a Cepal, cujo objetivo central é o fomento da política industrial na região, a partir de instrumentos e “boas práticas” adotados pelo governo brasileiro na área de inovação.
Vale lembrar que durante o período que se convencionou chamar de “Consenso de Washington”, a própria noção de uma “política industrial”, induzida pelo Estado, era considerada um anátema, uma ideia datada, “coisa dos tempos de JK, ou da Era Vargas”… Diziam que uma política industrial conduzida pelo Estado agravaria o problema do “crony capitalism”, que seria o clientelismo político levado ao campo do financiamento da indústria, de forma permissiva e ineficiente. Hoje, a Cepal vai avaliar a viabilidade dos instrumentos nacionais de política industrial e de inovação em outros países da região, um claro sinal de mudança de percepção.
O presidente Lula afirmou que hoje existe uma nova forma de integração, que busca criar um mundo multipolar e sem confrontos. “O motor dessa integração são os setores excluídos”, disse o presidente. Como você analisa essa questão?
No plano interno, as políticas públicas de combate à pobreza forjaram o surgimento de uma nova classe média, expressiva em tamanho. Esse segmento – outrora “excluído” – foi incorporado ao mercado de consumo interno nos últimos anos, o que possibilitou a rápida retomada do crescimento econômico depois de um choque provocado pela crise financeira global (falência do Lehman Brothers em 2008). No Brasil, de fato, a crise estava mais para “marolinha” do que para “tsunami”, sobretudo quando comparamos o Brasil com alguns casos europeus.
Os estudos da Cepal revelam que não só no Brasil, mas em outros países da região os últimos anos registraram significativa inclusão social dos mais pobres. Esses novos consumidores formam um mercado expressivo, que passa a ser o motor da integração.
No plano internacional, acontece algo semelhante. A rápida retomada do crescimento nas economias emergentes contribuiu para a superação do pior momento da crise econômica global. As grandes potências reconhecem o novo papel dos BRICs [Brasil, Rússia, Índia e China] na economia mundial. O G20 Financeiro – que se reuniu recentemente em Toronto – é retrato dessa realidade, suplantando o antigo G7 na conformação da governança global. Brasil, México e Argentina são os países da América Latina e Caribe no G20.
Entretanto, é preciso lembrar que, se por um lado os emergentes contribuem para corrigir algumas assimetrias estruturais no sistema internacional, por outro lado temos inúmeras tarefas pela frente, na reforma do FMI, na questão da mudança do clima, transferência de tecnologia, metas do milênio. Felizmente, esses desafios globais, que exigem ampla coordenação entre os governos, serão tratados em um contexto mais democrático, onde a voz dos países em desenvolvimento tem maior repercussão.
Durante o encontro, o assessor especial Marco Aurélio Garcia disse que a política externa brasileira favorece a criação de um grande mercado regional. È possível quantificar essa afirmação em números? O que os brasileiros ganham com essa política externa?
Primeiro, é preciso lembrar que a integração regional só é viável quando cada governo da região passa a fazer seu dever de casa na área de inclusão social. Fortalecidos, os mercados internos facilitam uma maior integração.
A política externa brasileira entra para viabilizar grandes obras de infraestrutura, a chamada integração física da região. Essas obras se justificam porque surgiu um enorme mercado regional, estimado em cerca de 350 milhões de consumidores. O adensamento do comércio exterior brasileiro com países em desenvolvimento é muito expressivo. Segundo dados do Ministério da Indústria e Comércio Exterior, as exportações para a América Latina e Caribe aumentaram em 42,8%, só no primeiro semestre de 2010, colocando a região na primeira posição de mercado comprador de produtos brasileiros. O caso do continente africano é igualmente significativo: basta ver os resultados da recente visita do Presidente Lula aos países da África Ocidental durante a Copa do Mundo.
Ganham os brasileiros porque são gerados novos empregos nas empresas exportadoras, nas firmas especializadas em logística, nas entidades de pesquisa em tecnologia. Ganhamos todos com os nossos vizinhos mais prósperos e estáveis. E, em última instância, ganham todos os que desejam uma ordem internacional mais justa e democrática.
Marcelo Salles, jornalista, é colaborador do jornal Fazendo Media e da revista Caros Amigos, da qual foi correspondente em La Paz entre 2008 e 2009. No twitter, é @MarceloSallesJ

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