Com posições anti-imperialistas importantes no século XX, presidente tem fim de carreira marcado por corrupção e personalismo
09/03/2011
Renato Godoy de Toledo
da Redação
O presidente da Líbia Muamar Kadafi vive seus dias de Muhammed Al-Sahaf, ex-ministro da Informação do regime de Saddam Hussein no Iraque. Enquanto as tropas dos EUA invadiram o país e esmagavam as forças pró-Hussein em 2003, Sahat convocava diariamente a imprensa para informá-la acerca da iminente vitória militar do exército iraquiano.
Kadafi parece querer repetir o fim tragicômico de Sahat – que depois tornou-se um informante dos EUA. No poder desde 1969, o clã dos Kadafi parece ser o único reduto líbio a acreditar na continuidade do governo. O presidente permanece em seu posto, mas com todo o país controlado pelas forças de oposição, tendo apenas a capital Trípoli sob seu comando.
Ao contrário do que ocorreu nos recentes levantes egípcios e tunisianos, o governo dos EUA prontamente demonstrou sua solidariedade à oposição líbia. Isso porque Kadafi, apesar de seu regime violento e corrupto, tem posições historicamente ligadas ao anti-imperialismo e à causa palestina na região.
Oriundo de uma tribo de beduínos nômades, o atual presidente teve sua liderança forjada na luta contra o rei Idris, que impunha um regime monárquico baseado na miséria da população e na repressão aos movimentos sociais.
Com a chegada de Kadafi ao poder, a Líbia nacionalizou o petróleo, empresas estrangeiras e setores estratégicos da produção. As medidas passaram a surtir efeito melhorando o nível de vida da população líbia, que passou a apoiar massivamente o novo governante.
No plano internacional, a Líbia integrou-se ao grupo dos países não-alinhados. Kadafi passou a centralizar o poder em sua figura e criou um modelo de socialismo baseado em suas teorias elencadas no Livro Verde, cor que tomou toda a bandeira do país após a revolução.
O professor de geopolítica da Fundação Santo André, Marcelo Buzetto, analisa o modelo político defendido por Kadafi no contexto do “nasserismo”, ideário inspirado na atuação do líder egípcio Gamal Abdel Nasser fundador de uma doutrina nacionalista árabe chamada de pan-arabismo.
“A Líbia fez um verdadeiro esforço para construir um modelo próprio de socialismo africano, combinando algumas iniciativas com conteúdo e caráter democrático, popular e anti-imperialista com ideias e princípios do nacionalismo árabe laico, principalmente do chamado 'nasserismo'. Houve um esforço em construir uma estrutura de poder popular, através da participação ativa e organizada das massas nos comitês revolucionários e em vários outros organismos de poder nascidos de uma tentativa de auto-organização do povo”, analisa Buzetto. No entanto, o analista afirma que o processo não está mais em curso. “Creio que hoje temos a demonstração de que tal processo que despertou curiosidade e interesse pelas potencialidades e novidades que apresentava não está mais em desenvolvimento na Líbia”.
Buzetto comenta que o conceito de Jamahiriya ("Estado das massas"), criado por Kadafi, hoje é mais “um instrumento de propaganda e agitação do que uma realidade concreta”.
Enfrentamento aos EUA
Ao engrossar o grupo dos países não-alinhados, Kadafi tornou-se um expoente anti-EUA no mundo. O auge desse enfrentamento deu-se nos anos 1980. Em 1986, os EUA realizaram um ataque aéreo em Trípoli e Benghazi deixando 41 mortos, entre os quais uma filha adotiva de Kadhafi. Dois anos depois, em 1988, o governo líbio participou de um atentado contra um avião da companhia estadunidense Pan-Am, na Escócia, vitimando 270 pessoas.
Começaram as sanções internacionais ao país africano, que passou a ficar mais isolado e apresentar recuos na política externa anti-imperialista.
“Inicialmente, Kadafi proclamava-se solidário à causa palestina, depois deste atentado começou a normalizar as relações com o ocidente. Foi um processo parecido com o do Egito, mas lá houve troca de dirigentes, enquanto na Líbia, manteve-se o mesmo. Houve uma abertura econômica e política que culminou no reconhecimento do Estado de Israel. O governo foi tornando-se uma espécie de ditadura familiar com um grau elevado de corrupção e apropriação privada da renda nacional. Assim, deu-se início a uma redistribuição regressiva da renda, com uma pequena camada dirigente sendo beneficiada. Com o impacto da crise mundial, agora, a população chegou a 30% de desemprego”, aponta o historiador da USP, Oswaldo Coggiola.
Mesmo no setor mais rentável da Líbia, o petrolífero, foram vistas concessões a transnacionais no último período. A gigante British Petroleum opera no país e tem boas relações com o governo Kadafi.
O governo líbio diminui o tom das suas críticas ao ocidente e, na ONU, assumiu a culpa pelo atentado contra o avião da Pan Am, pedindo desculpas. Em 2009, em um ato simbólico, Kadafi cumprimentou o presidente dos EUA Barack Obama na sede da ONU. Mesmo assim, a ONU afirma que pretende julgar Kadafi no Tribunal Penal Internacional após o desfecho ainda incerto dos acontecimentos na Líbia.
Vitória imperialista
Para o historiador Oswaldo Coggiola, o desfecho para o levante líbio ainda é nebuloso. Porém, fica claro que o imperialismo e os EUA tendem a lucrar com a situação no país. “Dizer que a derrubada de Kadafi vai beneficiar os EUA na região não significa defender o regime do ditador. Infelizmente, setores da esquerda mundial e brasileira têm defendido Kadafi. Defender alguém que usa armas de guerra contra sua própria população é um crime”, afirma.
Fonte: Brasil de Fato
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