Por Chico Bicudo, no Blog do Chico
Passei o final de semana agoniado, acompanhando a ocupação do prédio da Reitoria da USP. Na segunda-feira, com a ordem judicial de reintegração de posse já estabelecida, o prazo para saída dos estudantes se esgotando e conhecendo as autoridades que governam o Estado de São Paulo e o comportamento da Polícia Militar paulista nestas situações, postei em minhas páginas nas redes sociais uma espécie de desabafo: “o resultado final da ocupação será o recrudescimento do discurso fascista militarizado ("prende, mata, arrebenta, esfola, detona") e o tom também elevado em relação à "necessidade urgente" de privatização da universidade (o mantra do senso comum que diz que "afinal lá só estudam playboys endinheirados"). A guinada à direita será forte".
Gostaria de ter sido contrariado pelos fatos. Lamentavelmente, os desdobramentos só fizeram confirmar a avaliação. Depois de muitas leituras, momentos difíceis e muito doídos de reflexão e de dialogar com Elisa Marconi, companheira de sempre, e ainda com o jornalista e professor Fabio Cardoso, interlocutor de todas as horas, alcançamos mais uma perigosa constatação: como resultado dessa onda conservadora, organiza-se como uma orquestra cada vez mais ensaiada e afinada uma campanha de desmoralização da USP, em nome de projetos educacionais mais sintonizados com os ventos da pós-modernidade tecnicista. Nesse sentido, para fechar o circuito, é preciso fazer valer a estratégia da metonímia e criminalizar os estudantes da mais importante instituição de ensino superior da América Latina – ao bater na parte, atingem também o todo.
Para não deixar dúvidas no ar: desde o início, fui contra a ocupação do prédio da Reitoria. Não vou esconder aquilo que pensava – e penso. Fiz questão de, em diversas ocasiões, distintos espaços, manifestar publicamente essa posição. Na minha avaliação, não havia mais sentido político na ação. Tinha se transformado em arruaça festiva de uma minoria que não soube aceitar a democracia, pois tinham sido inclusive derrotados em assembleia dos estudantes, quando da saída do prédio da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH). O falso esquerdismo conduzia o movimento ao isolamento, o que é sempre perigoso. Não havia mais interlocutores, mesmo quando se considerava o campo das forças democráticas e progressistas. Essa foi minha crítica – política, argumentada, à esquerda, e não reverberando bobagens reacionárias e simplistas como “só estão lá porque querem fumar maconha”. Sempre repudiei esse discurso estúpido. A assembleia realizada na noite desta terça-feira, no prédio da História, a maior dos últimos anos, que reuniu cerca de três mil estudantes e votou pela greve geral, mostra que talvez outras pontes e articulações pudessem ter sido estabelecidas. Minha divergência foi sempre política, com os rumos do movimento – e, como tal, está sujeita a divergências e contestações. Tenho procurado ouvi-las, todas – as que realmente representam reflexões que fazem diferença. Para tolices e sandices, tenho mantido os ouvidos fechados.
Essa é uma questão.
Outra, gigantescamente diferente, diz respeito às reações que se proliferam como praga em relação à invasão do campus universitário pela PM e às prisões dos estudantes. São de arrepiar os cabelos. Tenho comentado com alguns amigos que fico aliviado por saber que tantos outros conhecidos, pessoas próximas de nossos círculos sociais, não façam parte da tropa de choque da PM paulista. Se fizessem, o estrago poderia ter sido ainda maior.
“Foi pouco, deveriam ter batido mesmo, para machucar, para deixar marcas, para aqueles vagabundos nunca mais esquecerem de como devem se comportar”. “Precisam ser todos expulsos sumariamente, não merecem estudar, são vândalos, destruíram um patrimônio que é nosso”. “Seria bom se passassem algumas noites na cadeia, junto com colegas bandidos, para ver como é bom posar de rebelde”. “Fosse eu, saía arrastando todo mundo, puxando mesmo pelos cabelos”. “São cidadães(mantenho a grafia errada, pois foi assim que ouvi) de quinta categoria, queimaram a bandeira do Brasil, violaram um símbolo pátrio”.
Essas foram algumas das falas que andei ouvindo durante as últimas 24 horas. E, pasmem, todas, sem exceção, vieram da fina flor da intelectualidade, são pessoas supostamente esclarecidas, bem formadas. Fazem questão de dizer que são democratas. Confesso que em alguns momentos imaginei que estivesse repentinamente participando de encontros do Partido Nacional-Socialista da Alemanha – ou do Comando de Caça aos Comunistas, nos anos 1960. Difícil debater nesse nível. Porque não há racionalidade, argumentos, muito menos disposição para ouvir – apenas uma sanha incontida de “esfola, arrebenta, faz justiça com as próprias mãos”.
Tais iluminados cobraram dos estudantes o cumprimento irrestrito das leis, o respeito à ordem. “A Justiça mandou sair”. Mas não só esperavam – como exigiam – da PM comportamentos duros, de arbítrio e de exceção, que não respeitassem qualquer norma legal ou constitucional e atentassem de forma consciente e deliberada contra a dignidade humana, as garantias individuais do cidadão. Justiça? Ou vingança? Aliás, sobre essa questão, durante o regime do apartheid na África do Sul, brancos racistas diziam para Nelson Mandela: "a lei está do nosso lado". O líder das lutas contra o racismo respondia: "e a Justiça, do meu".
A democracia destes pseudo-intelectuais-democratas é seletiva, vale para lá, mas não par cá; apenas direitos de alguns devem ser respeitados. Quando é assim, não é mais democracia, mas ditadura – “todos são iguais, mas uns são mais iguais que outros”, como traduziu o escritor George Orwell no clássico “A revolução dos bichos”. O fascismo é assim – chega sorrateiramente, vai contaminando o tecido social. Quando a gente abre os olhos...
Notem também como temos vivido recentemente a Era dos Adjetivos. Os ministros são corruptos, as ONGs são pilantras, os morros e as periferias são violentos, a universidade pública é ineficiente, Lula é um privilegiado – e os estudantes da USP são “maconheiros e mimados”. O adjetivo é o argumento de quem não tem argumentos. Reduz o mundo complexo a uma marca – repetida exaustivamente, transforma-se em rótulo, que não desgruda mais. Funciona para desqualificar, para agredir, para achincalhar, para impor falsas verdades. Jamais para debater. Porque, para tanto, é preciso estar disposto a ouvir, a descobrir, a mergulhar, a pensar – e não só a reproduzir qualidades ou defeitos colhidos aos quatro cantos. E tome senso comum!
Em um texto obrigatório para entender o empobrecimento e a banalização elevada à enésima potência das discussões públicas – e a repercussão reacionária do episódio da USP -, o jornalista Mauricio Caleiro escreve que "o debate sobre questões internas involui não apenas na forma (a difamação e os ataques pessoais substituindo o diálogo civilizado e a argumentação), mas também no conteúdo (com pressupostos que há pouco eram exclusivos de fanáticos de direita tornando-se de uso corrente entre os estratos médios e altos)".
E os adjetivos, consistentes na forma, frágeis nos conteúdos, não resistem ao mais leve sopro dos fatos – e dos argumentos. A Universidade de São Paulo, fundada em 1934, é a mais antiga do Brasil (Oxford é de 998; Harvard, de 1636). Tem mais de 80 mil alunos (graduação e pós-graduação) e reúne 36 unidades de pesquisa e de ensino, espalhando-se também pelo interior do Estado, em cidades como Bauru, São Carlos e Ribeirão Preto. Em 2011, o QS World University Ranking indicou que a USP é a 169 universidade mais importante do mundo – e a melhor da América Latina. Já no Times Higher Education World University Rankings, a USP aparece em 178 lugar – é a melhor da Ibero-América.
Em 2009, o Brasil publicou cerca de 33 mil artigos científicos em revistas internacionais indexadas (cerca de 2% da produção mundial). A USP foi responsável por algo em torno de 25% destes trabalhos – o que significa dizer que a instituição paulista é responsável por algo em torno de 0,5% da ciência feita no planeta. Dos cursos de pós-graduação brasileiros avaliados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), 25% dos considerados de excelência (notas 6 e 7) estão na USP – com significativa contribuição da área de Humanidades. Dos bancos da Universidade paulista saíram mais de dez presidentes da República (Jânio Quadros e Fernando Henrique Cardoso entre eles).
Por feliz coincidência, no mesmo dia em que aconteceu a invasão do campus pela PM, recebemos notícia que revelava que um estudante de graduação de Química - da USP - contestou e aperfeiçoou trabalho que havia sido desenvolvido há 70 anos por Linus Pauling, Prêmio Nobel da área. O estudo foi publicado na Physical Review B, da American Physical Society, uma das revistas científicas mais importantes do mundo. Pois então... essa é a USP improdutiva? Esses são os “vagabundos e mimadinhos” da USP? Ah, os adjetivos...
Quer dizer então que a USP é o mundo dos sonhos? Certamente que não. Aliás, vivemos agora um bom momento para repactuar o espaço que a Universidade de São Paulo pode ocupar na vida da cidade – em todos os sentidos – e no cenário acadêmico e científico nacional. É mais do que hora também de discutir a democracia e as relações internas, os órgãos de gestão e de decisão da Universidade, a participação de professores, alunos e funcionários nesses debates, a relação que a instituição precisa construir efetivamente com a sociedade (lazer, cultura, finais de semana no campus, transporte). Esse é o debate. A premissa? A universidade deve ser pública, gratuita, democrática e com ensino de qualidade, fazendo valer ainda o princípio constitucional de pesquisa e assistência.
É fundamental discutir segurança no campus universitário? Certamente. Mas não sob o viés da repressão, da presença ostensiva e arbitrária de uma PM que pretende criminalizar e perseguir estudantes e transformar alunos em bandidos. Tenho arrepios a esse cenário. Escolas e universidades, para mim, são templos dos saberes e do conhecimento, onde o argumento prevalece. Não os fuzis, fardas, botas e escudos. Vejam só: essa cena era mesmo necessária? É essa a polícia que queremos atuando na USP, cotidianamente? Aliás, para quem deseja travar contato com o outro lado da invasão da Reitoria pela PM (não o da mídia parcial e sectária, que já fez suas escolhas), recomendo a leitura deste texto, produzido por uma aluna da USP que não participava da ocupação, mas que acompanhou a truculência policial.
Se é para pensar em segurança de verdade, sugiro dialogar com as sugestões da urbanista Raquel Rolnik, para quem "é uma enorme falácia, dentro ou fora da universidade, dizer que presença de polícia é sinônimo de segurança e vice-versa. O modelo urbanístico do campus, segregado, unifuncional, com densidade de ocupação baixíssima e com mobilidade baseada no automóvel é o mais inseguro dos modelos urbanísticos, porque tem enormes espaços vazios, sem circulação de pessoas, mal iluminados e abandonados durante várias horas do dia e da noite. Esse modelo, como o de muitos outros campi do Brasil, foi desenhado na época da ditadura militar e até hoje não foi devidamente debatido e superado. É evidente, portanto, que a questão da segurança tem muito a ver com a equação urbanística”. Recomendo ainda a leitura de “A cortina de fumaça da segurança da USP ”, de Pablo Ortellado. Preciso, certeiro.
Não é difícil concluir que o desejo de uma PM pautada pelo viés da repressão é consequência da administração de um Reitor também marcada pelo autoritarismo. João Grandino Rodas, ex-diretor da Faculdade de Direito (aliás, já foi declarado, por unanimidade, persona non grata pela comunidade da São Francisco), tem estimulado caça às bruxas, processos administrativos, perseguições internas, contratações suspeitas, sufocando as demandas democráticas da comunidade uspiana e sucateando e instrumentalizando a Universidade. Vale lembrar que, nas eleições de 2009, Rodas foi o segundo colocado na lista tríplice da USP (o vencedor foi o sociólogo Glaucius Oliva); apesar disso, o atual Reitor foi o indicado pelo então governador José Serra (PSDB), quebrando a tradição de nomear o mais votado pela comunidade. Tal situação havia acontecido pela última vez à época da ditadura militar, no governo de Paulo Maluf. Em 2009, Serra respeitou a democracia interna? Ou preferiu afinidades ideológicas, em nome de outros projetos? E o que esperar de um Reitor que já assume sem apoio, respaldo e legitimidade de seus pares? Aqui, vale ler "A ditadura e seus fósseis vivos na USP de 2011 ", de Ana Paula Salviatti.
Teria muito ainda a dizer, talvez volte ao tema. Mas penso honestamente que já há elementos suficientes para contribuir com o debate. E, dito tudo o que está aqui, fica a pergunta, para reflexão coletiva: a quem afinal interessa demonizar a USP e os estudantes da USP?
Nenhum comentário:
Postar um comentário